16 mulheres e 1⁄2 Transe em trópico
09.09.19
Kempo _ os felinos _ a onça _ a arma e a jaula
O registro será em fluxo. Isso porque está tudo misturado nessa semana... muitos estímulos ao mesmo tempo, de assuntos diversos, que provavelmente se complementam ou se atropelam.
A aproximação/transição para o estado animal foi diferente do primeiro dia. Os detalhes desse estar foram muito preciosos. A pata ficou mais pesada. Ela se tornou arma, fazia o solo tremer, determinava territórios. Da mesma forma como o olhar ficou mais complexo, com as várias indicações dos interesses, formas de se aproximar e enxergar. As inúmeras possibilidades dos membros dianteiros, flexões, posições, delicadezas ou violências foram fortes. A questão espacial foi diferente. A roda não me deixou entrar no túnel. A “alcatéia de seres humanos” ao meu redor me segurava na superfície e não consegui mergulhar. Seus corpos me conectavam com o fora e não consegui entrar fera no íntimo da fera. Os deslocamentos em quatro apoios foram muito potentes, até a dor no joelho me lembrar que o corpo não estava apto para ser fera por longos períodos.
A interação com minha fera companheira foi potente como o primeiro dia. Senti que ali poderia mergulhar, adentrar as entranhas da onça, fazer aflorar o selvagem. Mas nessa tentativa veio o som. O urrar. E estava me tornando plena fera ali. A indicação de que o som não poderia estar presente me lembrou de que se tratava de uma edição do selvagem. O tropical selvagem corpo animal naquele momento não poderia ter som. Me lembrou de que eu não poderia ser qualquer corpo animal, mas um corpo animal na mira de uma arma, a câmera, que tem um poder de edição muito maior do que o da simples impossibilidade de som. Ela tem o poder de criar outros corpos. Deixar a onça mais ou menos animal, mais ou menos humana. Ela também parece poder adentrar na condição onça com seu olhar. Fixa e vai se aproximando para verificar de perto o que é.
O celofane dessa vez era vermelho. Vermelho Carne Sangue. A boca foi ativada desde o começo, o mastigar, o deslocar com a presa na boca, o salivar sobre aquela carne foi intenso. Mas a carne foi se tornando estragada e me conectando ao contemporâneo industrial à medida que sentia o gosto de plástico e tinha a certeza de que estava engolindo algo tóxico.
Estou com uma questão em relação ao olhar vigilante. Com certeza é por conta do último trabalho que fiz com câmeras de vigilâncias em espaços públicos da cidade. Ali no espaço interno a condição se colocou próxima do que eu vivi na rua. Um espaço demarcado, de controle, daquele olho específico. Lógico que os propósitos são completamente diferentes, mas o território demarcado foi forte para mim. Ao mesmo tempo que eu era onça e estava ali junto dos outros corpos animais na potência do lamber, da saliva, do deslocar em quatro apoios, da pata, das garras - que podem transicionar para um coçar o corpo do outro, mas também arranhar e ferir esse corpo se for feito com mais força e peso -, lembrava de vez em quando daquela arma apontada para mim. E fiquei presa naquele território imaginário, que não era mais selva e sim uma jaula transparente. Uma jaula tecnológica, digital, urbana, contemporânea. Talvez essa condição que ainda não era inteligível, mas presente na posição em que meu corpo assumia naquele espaço, ficou clara quando eu fui tirada do espaço e colocada como observador. Eu era um olho sem arma, mas que ao mesmo tempo editava. Porque aqueles corpos animais se restringiam àquele espaço iluminado, hipotético, pequeno? Por que as feras não vinham cheirar, atacar, conhecer esses corpos externos? Viraram no meu olhar feras dóceis, enjauladas, urbanas. Não estavam humanas, mas eram feras que estavam subjugadas aos aparatos humanos e tecnológicos.
A mistura foi grande como disse no começo. Assuntos externos ao 16 atropelando a experimentação. Mas é isso, não temos um corpo em cada trabalho, pesquisa, relação. Somos essa mistura de animal/ humano tentando existir em todos os contextos que nos são colocados, com a maior potência possível.
Fabiane Carneiro
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